sábado, 17 de outubro de 2009

Anacronismo brutal - Brasil - O freela que não me pagaram. Jornalismo e Trabalho escravo.




O trabalho infantil nas carvoarias brasileiras perdura como um melancólico retrato em branco e preto da era pós-Industrial


A Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra em meados do século XVIII, foi o principal propulsor (ao lado da Revolução Francesa) da queda do antigo regime agrário e arcaico que vigorou durante séculos na Europa, e se espalhou como um rastilho de pólvora por todo o mundo, instaurando um novo modelo econômico e social baseado na indústria e a livre iniciativa do comércio burguês.

Tal empreitada só foi possível graças ao uso de importantes insumos para produção de máquinas e de fábricas, onde o carvão vegetal teve um papel imprescindível: era obtido por um baixo custo, em larga escala e utilizando uma mão de obra barata, já que as indispensáveis leis trabalhistas, que zelam pela saúde do empregado, eram devaneios distantes e utópicos dentro da frenética atividade que começava a despontar nas indústrias.

Mão de obra barata era um eufemismo para escravidão naquelas condições. E outros países, com uma industrialização bem mais tardia que a dos países europeus, ainda convivem com essa realidade sob o aspecto do trabalho infantil, exercido por crianças e adolescentes com menos de 16 anos, e que na maioria dos casos caracteriza-se por um trabalho escravo, sob qualquer prisma de análise: carga horária semelhante ou pior que as estipuladas para um adulto, salários aviltantes, quando não são inexistentes, insalubridade e risco de vida pelo trabalho exercido, etc. A lista é tão desoladora quanto extensa.

O Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, convive com tais realidades entrelaçadas, tanto a do trabalho infantil quanto a do trabalho escravo, os dois fatores em um só nos trabalhos exercidos por crianças nas carvoarias brasileiras, espalhadas por vários estados e com uma importante atividade para a indústria, em especial as siderúrgicas, que se utilizam dessa matéria prima para a produção de ferro-gusa e aço, exportados principalmente para a China e Estados Unidos.

Há uma relação intrínseca entre o uso de carvão vegetal e o início do processo de industrialização no Brasil e a nascente indústria do aço e exploração de minério de ferro (outro insumo usado com carvão vegetal), marcados pela abundância de floresta nativa para extração de madeira, sem programas de reflorestamento, a baixa produção de custo da mão de obra e o quase inexistente uso do carvão mineral à época, meados do século passado, importado ou produzido no país, mas impossibilitado de ser utilizado pelo comércio em função da malha viária precária. Nos últimos anos, o crescimento pela demanda de matérias-primas e insumos na economia global coloca o Brasil como um importante exportador, e concomitantemente um anacrônico retrato de exploração do elo mais fraco, que são os trabalhadores de carvoarias, onde se encontram muitas crianças.

Um relatório produzido em 2002, pelo então deputado Orlando Fantazzini, sobre exploração de trabalho de crianças e adolescentes em diversas atividades (trabalho em olarias; extração de pedras, areia, argila), revela com crueza a brutalidade do cotidiano das carvoarias: “(...) Trabalho noturno. Exposição a níveis elevados de pressão sonora (moto-serra). Esforço físico. Exposição à radiação solar. Picada de animais peçonhentos. (...) Queda de toras. Preparação e aplicação da barrela. Manuseio do fogo. Altas temperaturas. Calor excessivo. Exposição a variações bruscas de temperatura. Explosão e desabamento do forno combustão espontânea do carvão. Fumaça contendo subprodutos da pirólise e da combustão incompleta: ácido pirolenhoso, alcatrão, metanol, acetona, acetatos, CO, CO2, metano. Monotonia acompanhada do estresse da tensão(..).

O governo brasileiro tem feito esforços para diminuir o trabalho infantil nas últimas duas décadas, segundo trabalho do PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio) do IBGE, com crianças entre 5 a 17 anos, entre 1993 e 2004, indicando uma queda pela metade na atividade. A mesma pesquisa de 2008 indica que 4,8 milhões de crianças permanecem trabalhando.

Segundo o documento “O trabalho infantil em cadeias produtivas de base mineral” do CETEM (Centro de Tecnologia Mineral), publicado em dezembro de 2006, a produção de carvão vegetal ocorre em todo território brasileiro, aproximadamente 2.950 num total de 5.560 municípios, e em muitos deles há vultoso número de crianças e adolescentes trabalhando. Os estados com maior número de municípios na produção são Minas Gerais (311) e Bahia, e o Maranhão, que produz em todos os seus 217 municípios (IBGE, 2004).

A produção de ferro-gusa no país, do qual o aço é produzido e alimentado pelo carvão vegetal, se encontra em cinco importantes pólos: Quadrilátero Ferrífero – MG; Marabá – Pará; Açailândia – MA; Vitória – ES; Corumbá – MS (CETEM, 2004). Nos estados do norte, a produção de carvão vegetal está nos estados do Pará e Maranhão, dois pólos de ferro-gusa da região; a Amazônia, com sua disponibilidade mineral, é outro pólo importante de carvão, e o ferro-gusa ali produzido é utilizado no mundo todo, principalmente em peças automotivas.

Em novembro de 2006, uma extensa e detalhada reportagem publicada no site da agência de notícias Bloomberg News, pelos jornalistas Michael Smith e David Voreacos (“Slaves in Amazon Forced to Make Material Used in Cars”), revelou a relação entre o aço utilizado por grandes corporações norte-americanas, como a Nucor Corporation, General Motors e Ford utilizavam a matéria prima do ferro-gusa produzida por trabalho escravo (e infantil, levando em conta nesse nicho de trabalho) no Brasil, relatando a imensa cadeia de produção que leva o produto de um trabalho produzido aqui até as mais altas corporações com alto poder tecnológico e econômico, gerou grande repercussão e forçou empresas como a Ford a parar de importar o ferro-gusa brasileiro. À época, houve um imbróglio diplomático entre os países, por conta da vontade do governo norte-americano em checar as informações sobre o fato, por parte do deputado democrata Dennis Kucinich, que não foi levada adiante.

Pesquisa divulgada esse ano pelo IBGE aprofunda ainda mais a discussão em torno do trabalho infantil no Brasil: 59,5% dos brasileiros com idade entre 5 e 13 anos que trabalhavam em 2007 eram pretos ou pardos, comprovando o imenso desnível social que existe entre as raças no país.

Somadas todas as questões, o quadro permanece desolador até o momento, e o governo brasileiro precisa empenhar-se muito mais se desejar obter êxito na erradicação do trabalho infantil e escravo no país, sombras que se espreitam, lado a lado.


R. Saffuan (novembro/2008)


Obs: Esse texto foi um freela para uma revista de direito trabalhista. Não fui pago até hoje. Brasil.

2 comentários:

  1. Triste realidade brasileira.
    Trabalho escravo e trabalho "gratuito" em benefício dos grandes.

    Seu texto nos mostra o que já sabemos mas queremos esquecer, ou melhor, queremos que não exista.

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  2. E nesse momento de unfanismo ululante, é bom ficar de olhos abertos. E você vê o paralelo entre o trabalho escravo e o trabalho inútil - fiquei a ver navios. Obrigado pela visita, beijos.

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