quinta-feira, 11 de março de 2010

Jards Macalé: “Maldito é a mãe. O que faço é música”.


“Já comi muito da farinha do desprezo. Como é forte o gosto da farinha do desprezo. Só vou comer agora da farinha do desejo.”

Acompanhando a “retomada” do cinema nacional na última década, alguns documentários importantes regsataram a memória musical de idiversos artistas brasileiros: Titãs, Simonal, Arnaldo Baptista e Paulo Vanzolini foram alguns dos agraciados. Principalmente no caso do resgate artístico de Simonal, devido à sua controversa história de ostracismo, que envolveu gorilas do DOPS e o espancamento do seu contador.

No entanto, parece que essa febre de documentários musicais está prejudicando o rigor no tratamento do enredo e uma abordagem mais complexa da obra do artista, como é o caso de “Jards Macalé: um morcego na porta principal”, de Marco Abujamra e João Pimentel.

Na primeira cena do filme, Jards está literalmente puto e desconfiado com os critérios utilizados na escolha dos entrevistados, e ameaça, inclusive, processar os autores caso não gostasse do resultado final.

(Obs: E, novamente, entrevistaram o Nelson Motta, com seu indefectível óculos escuros. Sabemos da importância de Nelsinho na história da música popular brasileira. Mas não para TODOS os artistas, e nem para agregar histórias a todos os documentários. Parece escolha de universitário que vai realizar TCC, que sempre vê as mesmas referências.)

“Mas você tem medo de quê?”, pergunta uma voz em off, para Jards. “De que vocês desconstruam tudo que fiz durante a minha vida. A minha própria vida”. Não chega a tanto, até pelo fato do filme ter sido liberado por ele. Mas há hiatos que comprometem a sua apresentação ao grande público (acho que os documentários servem pra isso), já que se trata de um artista de trajetória conturbada.

A discografia do músico é praticamente ignorada. Não há uma cronologia dos seus álbuns, nem mesmo as histórias sobre as circunstâncias em que foram forjados. As músicas são tocadas sem nenhuma referência ou contextualização, somente nos créditos finais.

Algumas imagens de shows recentes de Jards dão uma impressão da intensidade do violão neurótico e da carga dramática de suas interpretações. Mas nem mesmo as imagens de arquivo da clássica interpretação de “Gotham City” (parceria com Capinam), no IV Festival Internacional da canção foram resgatadas. Por outro lado, as imagens de super 8 arquivadas pelo autor são uma constante em determinado momento, para preencher esse vácuo.

O documentário foca as excentricidades de Jards e as origens do estigma que levaram à sua pecha de maldito e músico irascível. Jards e seus amigos (Zé Celso - o mais contundente de todos - Capinam, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Abel Silva, Hermínio Bello de Carvalho) deixam claro que insubmissão à indústria fonográfica e autenticidade não coadunam com maldição ou marginalidade, mas sim compromisso de vida inteira com uma ética pessoal e intransferível (relembrando Torquato Neto, seu grande amigo e parceiro).

“Maldito é a mãe. Eu lutava por um mínimo de liberdade diante daquela ditadura maluca. Malditos mesmo eram Baudelaire e Rimbaud, essa galera da pesada, que até hoje esse pessoal não conhece. Vá ao dicionário e procure o significado da palavra maldito”, afirma com veemência Jards. Logo depois, o artista é filmado com uma camiseta do Superman, fumando um baseado, o que acaba por reforçar essa mesma imagem.

Positivamente, o filme tem histórias impagáveis de Jards ao lado de Moreira da Silva, contadas em entrevista feita por Jaguar; a história do memorável disco “O banquete dos mendigos”, em 1973, que celebrou os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em plena ditadura militar (que censurou o próprio texto da Declaração, lido pelo poeta Ivan Junqueira), e imagens do parceiro Waly Salomão.

Mas a imagem inicial do filme, onírica, com Jards e sua mãe em uma cadeira de balanço, vale por uma vida inteira.