segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Breve nota sobre a Amizade


Jack Kerouac desenvolveu seu estilo literário baseado nas conversas e nas cartas que recebia de seu melhor amigo, Neal Cassady (Dean Moriarty, em “On the road”). Esse estilo ficou conhecido como “prosa espontânea”, e também foi influenciado pelo fluxo de consciência onírico de James Joyce, da liberdade e cadência furiosa dos improvisos jazzísticos do bebop, da honestidade sobre como lidar com o sofrimento nos ensinamentos extraídos do Budismo e do Taoísmo.

Mas Neal foi a pedra fundamental desse achado de Keroauc.

Neal era conhecido por sua prolixidade inspirada, seu apetite por anfetaminas e sexo, e sua fidelidade canina aos amigos. Cruzava centenas de quilômetros de costa a costa dos Estados Unidos apenas para ter alguns momentos de prazer e hedonismo com Allen Ginsberg, Kerouac, Willian Burroughs. Sacrificava às vezes sua mulher (quando não a oferecia aos amigos) e filhos, e por fim, sacrificou a si próprio, e morreu jovem, em uma linha de trem no México, após anos de abuso e vida frenética.

A amizade entre os dois é um dos capítulos mais bonitos na história da literatura do século XX, e foi a semente para as rebeliões juvenis que começaram na década de 50 e que se seguiram até o movimento hippie, que provocou repulsa em Kerouac, enquanto Neal foi um entusiasta. O halo havia caído, o ciclo estava encerrado.

Escrevo isso pois percebo nessa dupla o quão frutífera pode ser uma amizade quando não há regras, horários, pruridos, pudores ou grana. Quando tudo pode ser resolvido com uma conversa. Quando nenhuma mulher pode abalar essa amizade, abalizada pelo espírito, pelas vísceras. É preciso ter colhões e estômago forte para uma amizade desse tipo. Às vezes, é preciso engolir o orgulho, e muita merda também.

Outro dia, estava com um amigo íntimo, parceiro musical, e notamos que ao final de cada uma das músicas que tocávamos, apertávamos nossas mãos. Após alguns minutos de elevação e estados alterados, o aperto de mão selaria a nossa volta ao mundo real, estabeleceria o vínculo, nos traria de volta do mundo dos espíritos de olhso fechados.

Nesses tempos histéricos e descompassados de internet e de slogans neoliberais para jovens formandos como “Arbeit macht frei" (“O trabalho liberta”, letreiro de metal da entrada do antigo campo de concentração nazista de Auschwitz), acabamos encontrando os amigos pouco, e apenas em situações de excesso e catarse: festas, bares, rodas etílicas, etc.

Amizade no hedonismo. Por isso você vê as ruas e bares lotados às sextas-feiras em São Paulo. Ficam todos girando loucamente como libélulas em torno de uma luz desbotada, amarelada, nos pequenos botecos sórdidos onde lavamos a roupa suja do tanque que a vida é. São os amigos buscando luminosidade por meio da dor, em meio ao caos que nos cerca e nos devora o coração. “Amizade líquida”, by Zygmunt Bauman.

É por isso que você vê tantas garrafas quebradas nas ruas, sujeira, descaso com o próximo, porque as amizades mal se sustentam em meio ao liquidificador de almas das ruas paulistanas no início de século XXI.

Por isso escrevem que o amor é importante, porra, em meio ao lixo visual dos muros caindo aos pedaços. É por isso que ainda aperto a mão de meus amigos quanto toco “Filho de Santa Maria”, ainda que não os tenha visto há semanas. É por isso que precisamos continuar com a cópula espiritual entre os amigos, a polinização das cores nas almas furtivas para que a arte, ainda que forjada individualmente, possa vicejar.

2 comentários:

  1. Olá, meu caro amigo, histórias bonitas se escrevem assim. Polinização é para poucos pares. Que sejamos, então, um viço!

    Um abraço

    Marcelo Quaz

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  2. Intrépida mensagem, num ímpeto de verdade ela roça na cara larga sobre reflexão da amizade.

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